Número total de visualizações de páginas

6 de junho de 2021

Razões e Debates

 

OS PORTUGUESES NAS GUERRAS ULTRAMARINAS


1 – Fundamentos do discurso patriótico

Por natureza, nenhum ser humano deseja a guerra. Os antepassados transmitiam o espírito de luta aos mais novos, por razões de sobrevivência, na disputa dos territórios e dos bens necessários ao consumo humano. Naturalmente que as pessoas tendem a defender aquilo que lhes pertence, mas ninguém tem vocação para o sofrimento que as guerras impõem aos seus participantes directos.

Admite-se que muitos soldados têm relutância em combater, especialmente quando desconhecem a causa do combate. Mesmo o discurso do patriotismo não funciona para todos os cidadãos de igual modo, tendo em conta as mudanças sociais, a idade, o estatuto social ou a identidade com a Pátria.

No caso português, quase todos os combatentes foram empurrados para a guerra em circunstâncias adversas aos seus interesses, com fundamento na preservação do território português, tão propagado pela comunicação social e nos discursos oficiais. As características do povo português têm pouco de guerreiros, mas muito de inocência ou moralismo ancestral, porque sempre fomos um povo mal compreendido pelos governantes com o complexo de superioridade justificado no compromisso mais absurdo da condição humana. A pregação dos superiores hierárquicos nunca foi capaz de justificar as razões da guerra nas terras ultramarinas, gratificante para alguns que colheram bons proventos, mas desgastante e dolorosa para a generalidade dos combatentes.

Para evitarem embarcar para a guerra ou por razões de melhoria de vidas, muitos jovens mancebos abandonaram o país a caminho da emigração clandestina, correndo sérios riscos, passando as fronteiras a salto. Questões controversas, mas atendíveis perante o impasse e o demasiado prolongamento da guerra, sem que se vislumbrasse alguma forma de negociações com os movimentos independentistas.

2 – Razões solidárias, sem consciência heroica

Por pressão dos poderosos interesses estrangeiros, por conveniências políticas e interesses militares, o abandono das terras ultramarinas criou graves prejuízos a muitos milhares de cidadãos que lá viviam, sendo a culpa da descolonização atirada para cima dos combatentes desmobilizados e abandonados à sua sorte. Por isso, aqueles que conseguiram integrar-se na sociedade, trabalhar e participar no desenvolvimento do país, tiveram o mérito de galgar as dificuldades e viver; já o mesmo não aconteceu com os que nunca conseguiram limpar da sua mente os traumas dos momentos difíceis, os quais continuam a carregar dentro de si as imagens terríveis dos mortos e esfacelados caídos a seu lado. Todos merecem respeito e reconhecimento, mas estes merecem, também, solidariedade pública.

Admitindo que muitos dos combatentes entenderam a sua missão fundamentada no sentimento de solidariedade para com os portugueses daqueles territórios, raramente o fizeram com o espírito de luta pela pátria, com consciência heróica. Freud soube definir as premissas que podem levar “os heróis ao espírito de luta” como justificativo da defesa duma comunidade que conduza ao conflito com significado moralista ou de defesa; daí se possa concluir que ninguém vai à guerra para ser herói, porque o sacrifício da própria vida não o justifica, especialmente quando os governantes desprezam a elite de homens que revelaram um estado de espírito altruísta e abnegado em circunstâncias severamente adversas na defesa das causas da Pátria.

3 – Efeitos da guerra na Vida dos Combatentes

Com o movimento de muitos milhares de mancebos das terras de origem para locais e ambientes que nunca tinham imaginado encontrar, muitos deles rudes camponeses e iletrados, a fim de receberem os mínimos de ensinamentos e instrução militar e logo embarcados para as longínquas terras africanas, Portugal teve que gastar avultados recursos financeiros no esforço de guerra, o que proporcionou um inesperado desenvolvimento social e industrial.

Ora, as circunstâncias do ambiente de guerra, em meios desconhecidos e hostis, com graves carências de subsistência, perante o risco de serem feridos e morrer, causaram grandes transformações na formação da personalidade e no desenvolvimento cognitivo dos combatentes; os efeitos nefastos na saúde mental dos militares destacados nos postos avançados, em locais inadequados para viver longos meses em isolamento, sofrendo os efeitos dos bombardeamentos inimigos, alteraram comportamentos e deixaram marcas para o resto das suas vidas. Esses efeitos são mais notáveis na mudança de sensibilidade, no apego à vida, no sentido da solidariedade e da camaradagem cimentada em condições de grande dificuldade e perigo.

O fadário daqueles mancebos começou com o recrutamento, período de instrução e aprendizagem de coisas novas, embarques e longas viagens sobre o mar, entre 8 a 25 dias, atulhados nos porões de navios teimosamente lentos. Mas, o abandono a que foram votados depois do cumprimento do seu dever patriótico, também foi doloroso e penoso, levando muitos a tentar melhorar a vida na emigração.

4 - Abandono ou Reconhecimento

Embora não fossem bem compreendidos na sua missão, os Combatentes não desertaram… e cumpriram o sagrado dever que a Pátria lhes impôs, transmitindo à sociedade os valores duma elite moral e cívica que é cada vez mais rara entre a juventude. É por tais razões que os combatentes são merecedores do respeito e do reconhecimento da Nação, especialmente dos organismos oficiais que devem proporcionar condições de vida tranquila, criando centros de apoio social, psíquico e psicológico para reparar as feridas invisíveis, mas que podem ser detectadas em muitos dos intervenientes na guerra. O reconhecimento passa também pelos apoios sócio-económicos para os que não conseguiram integrar-se na vida profissional activa devido às mazelas resultantes da permanência em ambiente de guerra, que, objectivamente, causou estragos irreversíveis no miocárdio e no cérebro, levando ao desgaste prematuro destes órgãos, bem como à perda de proventos adequados à sua vida normal.

Finalmente, para os que assumiram o compromisso da defesa das causas da pátria, o reconhecimento dos esforços dos combatentes pode ser gratificante, em vez da repulsa e do negativo sentimento de abandono, prejudicial ao espírito de unidade nacional que se pode reflectir na sociedade civil e nas novas gerações. Compreender o passado é fundamental para os alicerces do futuro.

Maia, 10 de Junho de 1995

Joaquim Coelho

Combatente e repórter em Angola e Moçambique







Sem comentários:

Enviar um comentário