OS
PORTUGUESES NAS GUERRAS ULTRAMARINAS
1
– Fundamentos do discurso patriótico
Por natureza,
nenhum ser humano deseja a guerra. Os antepassados transmitiam o espírito de
luta aos mais novos, por razões de sobrevivência, na disputa dos territórios e
dos bens necessários ao consumo humano. Naturalmente que as pessoas tendem a
defender aquilo que lhes pertence, mas ninguém tem vocação para o sofrimento
que as guerras impõem aos seus participantes directos.
Admite-se que
muitos soldados têm relutância em combater, especialmente quando desconhecem a
causa do combate. Mesmo o discurso do patriotismo não funciona para todos os
cidadãos de igual modo, tendo em conta as mudanças sociais, a idade, o estatuto
social ou a identidade com a Pátria.
No caso
português, quase todos os combatentes foram empurrados para a guerra em
circunstâncias adversas aos seus interesses, com fundamento na preservação do
território português, tão propagado pela comunicação social e nos discursos
oficiais. As características do povo português têm pouco de guerreiros, mas
muito de inocência ou moralismo ancestral, porque sempre fomos um povo mal
compreendido pelos governantes com o complexo de superioridade justificado no
compromisso mais absurdo da condição humana. A pregação dos superiores
hierárquicos nunca foi capaz de justificar as razões da guerra nas terras
ultramarinas, gratificante para alguns que colheram bons proventos, mas
desgastante e dolorosa para a generalidade dos combatentes.
Para
evitarem embarcar para a guerra ou por razões de melhoria de vidas, muitos
jovens mancebos abandonaram o país a caminho da emigração clandestina,
correndo sérios riscos, passando as fronteiras a salto. Questões controversas,
mas atendíveis perante o impasse e o demasiado prolongamento da guerra, sem que
se vislumbrasse alguma forma de negociações com os movimentos independentistas.
2
– Razões solidárias, sem consciência heroica
Por pressão dos
poderosos interesses estrangeiros, por conveniências políticas e interesses
militares, o abandono das terras ultramarinas criou graves prejuízos a muitos
milhares de cidadãos que lá viviam, sendo a culpa da descolonização atirada
para cima dos combatentes desmobilizados e abandonados à sua sorte. Por isso,
aqueles que conseguiram integrar-se na sociedade, trabalhar e participar no
desenvolvimento do país, tiveram o mérito de galgar as dificuldades e viver; já
o mesmo não aconteceu com os que nunca conseguiram limpar da sua mente os
traumas dos momentos difíceis, os quais continuam a carregar dentro de si as
imagens terríveis dos mortos e esfacelados caídos a seu lado. Todos merecem
respeito e reconhecimento, mas estes merecem, também, solidariedade pública.
Admitindo que
muitos dos combatentes entenderam a sua missão fundamentada no sentimento de
solidariedade para com os portugueses daqueles territórios, raramente o fizeram
com o espírito de luta pela pátria, com consciência heróica. Freud soube
definir as premissas que podem levar “os heróis ao espírito de luta” como
justificativo da defesa duma comunidade que conduza ao conflito com significado
moralista ou de defesa; daí se possa concluir que ninguém vai à guerra para ser
herói, porque o sacrifício da própria vida não o justifica, especialmente
quando os governantes desprezam a elite de homens que revelaram um estado de
espírito altruísta e abnegado em circunstâncias severamente adversas na defesa
das causas da Pátria.
3
– Efeitos da guerra na Vida dos Combatentes
Com
o movimento de muitos milhares de mancebos das terras de origem para locais e
ambientes que nunca tinham imaginado encontrar, muitos deles rudes camponeses e
iletrados, a fim de receberem os mínimos de ensinamentos e instrução militar e
logo embarcados para as longínquas terras africanas, Portugal teve que gastar avultados
recursos financeiros no esforço de guerra, o que proporcionou um inesperado
desenvolvimento social e industrial.
Ora,
as circunstâncias do ambiente de guerra, em meios desconhecidos e hostis, com
graves carências de subsistência, perante o risco de serem feridos e morrer, causaram
grandes transformações na formação da personalidade e no desenvolvimento
cognitivo dos combatentes; os efeitos nefastos na saúde mental dos militares
destacados nos postos avançados, em locais inadequados para viver longos meses
em isolamento, sofrendo os efeitos dos bombardeamentos inimigos, alteraram comportamentos
e deixaram marcas para o resto das suas vidas. Esses efeitos são mais notáveis
na mudança de sensibilidade, no apego à vida, no sentido da solidariedade e da
camaradagem cimentada em condições de grande dificuldade e perigo.
O
fadário daqueles mancebos começou com o recrutamento, período de instrução e
aprendizagem de coisas novas, embarques e longas viagens sobre o mar, entre 8 a
25 dias, atulhados nos porões de navios teimosamente lentos. Mas, o abandono a
que foram votados depois do cumprimento do seu dever patriótico, também foi
doloroso e penoso, levando muitos a tentar melhorar a vida na emigração.
4
- Abandono ou Reconhecimento
Embora não fossem
bem compreendidos na sua missão, os Combatentes não desertaram… e cumpriram o
sagrado dever que a Pátria lhes impôs, transmitindo à sociedade os valores duma
elite moral e cívica que é cada vez mais rara entre a juventude. É por tais
razões que os combatentes são merecedores do respeito e do reconhecimento da
Nação, especialmente dos organismos oficiais que devem proporcionar condições
de vida tranquila, criando centros de apoio social, psíquico e psicológico para
reparar as feridas invisíveis, mas que podem ser detectadas em muitos dos
intervenientes na guerra. O reconhecimento passa também pelos apoios
sócio-económicos para os que não conseguiram integrar-se na vida profissional activa
devido às mazelas resultantes da permanência em ambiente de guerra, que,
objectivamente, causou estragos irreversíveis no miocárdio e no cérebro,
levando ao desgaste prematuro destes órgãos, bem como à perda de proventos
adequados à sua vida normal.
Finalmente, para
os que assumiram o compromisso da defesa das causas da pátria, o reconhecimento
dos esforços dos combatentes pode ser gratificante, em vez da repulsa e do
negativo sentimento de abandono, prejudicial ao espírito de unidade nacional
que se pode reflectir na sociedade civil e nas novas gerações. Compreender o
passado é fundamental para os alicerces do futuro.
Maia, 10 de Junho
de 1995
Joaquim Coelho
Combatente e
repórter em Angola e Moçambique